segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Professor Calixto leitor de Lacan

O professor Calixto encontrava-se numa encruzilhada (+ uma) na sua curta vida de filósofo expontâneo e autodidata. Tinha saudades do amor e vai daí remeteu o seguinte lacónico conteúdo em uma carta para Maria da Conceição, a sua confidente em matérias inflamáveis do coração:

"Se os freudianos interpretam (isto é, tratam de interditar) a resistência e as intensões edípicas, se os kleinianos interpretam (idem) a voracidade, a destrutividade e a inveja, e os lacanianos, a demanda (isto é, a mentira, o engodo, a contrafação), temos como resultado global que o psicanalista que eu chamo de "ortodoxo" (assim mesmo, entre aspas, porque sua pretensão à "opinião correta", significado original dessa expressão, não passa, na verdade, de pretensão) visa acima de tudo atingir, com suas intervenções, o id do paciente. Talvez os lacanianos não visem tanto o id. Afinal, a vigarice é coisa do ego. No entanto, a postura desse tipo de "psicanalista" "lacaniano" – sim, ambos os termos entre aspas – é de quem desanca um usurpador. Ainda que o paciente seja do tipo "toupeira", pois nesse caso ele estará usurpando uma paz à qual não tem direito. E a ambição, convenhamos, é sempre da ordem do id. Ergo… Não deve ser à toa que Lacan fala em "examinar o fundo falso da mala do paciente", e em outro lugar fala do psicanalista como um "violador de túmulos"… Os "psicanalistas" "lacanianos" (com aspas nas duas palavras) são aqueles que levam Lacan ao pé da letra, e mesmo sem ter estudado Lacan nem mesmo um pouco, a mim deu para entender que Lacan pode ser tudo, menos um literal. E pensar que é o próprio Lacan quem diz que ao psicanalista – agora sem aspas – são permitidos todos os pecados, menos o da ingenuidade…
Para os "freudianos", o paciente é um parricida incestuoso, a quem é preciso demover de suas horrendas intenções. Para os kleinianos (sem aspas. Winnicott deixava claro, ainda nos tempos heróicos do movimento kleiniano, que se Melanie Klein não impedia seus seguidores de formarem uma seita fundamentalista, era porque ela não queria. Ver "O Gesto Espontâneo", correspondência de D.W.Winnicott, editado por F.Robert Rodman, Ed. Artes Médicas, P. Alegre) ele é um monstro de indescritível selvageria, uma fera dificilmente domável caracterizada não apenas por um apetite insaciável, mas pela implacável satisfação com que estraçalha suas vítimas. E para os "lacanianos", o paciente é um idiota – um idiota que não sabe do que está falando, ou que pretende levar vantagem, e cuja cara é preciso esfregar na sujeira que ele sempre deixa sobre o tapete. (Ah, que saudade de um texto que guardei durante vinte e tantos anos – e por fim perdi – do saudoso Eduardo Mascarenhas, em que ele fazia um estudo antropológico desse tipo sobre cada uma das escolas da psicanálise).
Num sentido bem genérico, o "psicanalista" acima descrito não faz outra coisa, portanto, que bancar o superego do paciente. E um superego, convenhamos, dos mais canalhas, justamente porque entrou na história a pretexto de ajudar – e de libertar!
Sei que a declaração acima é um tanto exagerada. Conheço muitos colegas dessas três escolas que em nada se parecem com o "psicanalista" que acabei de descrever. Mas algumas experiências pessoais de análise, diversos textos e muitos "causos" contados por colegas me convenceram de que o alvo da psicanálise "séria" era sempre o id do paciente. A doença do paciente seria provocada, portanto, por seus impulsos socialmente intoleráveis (coisas do id…) ou por sua percepção inteiramente distorcida da realidade (aparentemente coisas do ego, pois isto se refere à análise "lacaniana", mas como tentei mostrar, é no id com suas maquinações que será "encontrada" a origem dessa "contrafação".)"

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